Menino que tem doença degenerativa conta sua história de vida e superação em 48 páginas. Cada capítulo foi escrito com emoção, lágrimas, calos na língua e uma vontade imensa de voar
Sem os movimentos dos braços, ele escreveu a vida com a boca. Sem mover as pernas, sonha todos os dias que corre e anda de bicicleta. Sonha que empina pipa e voa junto com ela. Sonha o que quiser, como quiser. Quando não mais havia razão para ser feliz, ele dá uma lição na cara de quem pensa o contrário: "Felicidade pra mim é poder acreditar que tudo pode ser melhor do que é".
A vida escrita com a boca virou livro de verdade. Tem até nome: Minha vida em rodas me faz capaz de voar e sonhar. Vai ter tarde e noite de lançamento. E ele dará, com a caneta na boca, todos os autógrafos para quem ali estiver e for capaz de presenciar como se renasce todos os dias.
Esta é a comovente história de Jeferson Ramos da Cruz, de 13 anos, contada com exclusividade pelo Correio em 24 de abril deste ano. Nela, a luta do menino contra o preconceito, as dificuldades financeiras da família e as privações que passara pela quase total limitação física. Ele é portador de artrogripose múltipla - doença congênita caracterizada por várias deformidades rígidas nas articulações.
Jeferson nunca andou. Nunca empinou pipa, nunca levou um tombo de bicicleta, nunca escovou os próprios dentes, nunca brincou de polícia e ladrão, nunca penteou os cabelos ou lhes passou gel, para que ficassem modelados e fixos, como gosta. Nunca amarrou os sapatos. Mas a despeito de tudo isso é feliz. E a felicidade se escancara no sorriso sincero do filho de um pedreiro e de uma dona-de-casa.
A reportagem sobre a vida de Jeferson comoveu Brasília. E a ajuda veio de todos os lados. Ele ganhou computador, material de construção para reformar a casa com chão de cimento vermelho, no Vale do Amanhecer, em Planaltina. E os rascunhos de sua vida viraram o livro com o qual tanto sonhou. A Editora Thesaurus e o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) entraram na luta em favor do menino. Juntos, bancaram a obra. O livro, com mil exemplares e 48 páginas, recheadas de texto e desenhos, está pronto.
Na capa, o desenho de menino feito por Jeferson. Há um sol, uma árvore cheia de frutos, uma casa simples, um menino sentado numa cadeira de rodas e outro empinando pipa. Quem é o menino que empina pipa? "É meu irmão mais novo. Eu fico olhando ele, sentado na cadeira", explica o autor da obra. Num dos trechos do livro, a confissão da felicidade: "Sou um menino muito feliz. Eu não ando, mas me arrasto. Eu não levanto meus braços, mas Deus me deu o dom de escrever com a boca. Meu Deus, meu anjinho, como o Senhor é bom!"
É essa a história do menino que desafiou terríveis probabilidades médicas. Quando nasceu, em Barreiras (BA), uma semana depois do parto, a mãe procurou o melhor pediatra da cidade. Pagou-lhe o que não podia para ouvir algum alento. O médico, sem a menor sensibilidade, disse à mãe do bebê: "Essa criança tem problema no corpo inteiro. Não vai viver muito. Como vão criar um menino assim?" Entre lágrimas e desespero, a mãe saiu daquele consultório carregando o filho nos braços. Carrega até hoje, 13 anos depois. E nunca dele desistiu.
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À procura de esperança
O pedreiro Gilmar, então com 21 anos, e a dona-de-casa Cleide, da mesma idade, decidiram que Barreiras não lhes cabia mais. Viajaram, sem conhecer ninguém, a Brasília. Vieram em busca de tratamento. Jeferson contava 20 dias de nascido. Aqui, conseguiram uma vaga no Hospital Sarah. E o bebê começou a luta pela vida. A mãe jurou que o filho teria, no que dependesse dela, uma vida normal. Aos 4 anos, Jeferson foi à escola. Todos os dias, Cleide o carregava nos braços, até conseguir comprar a primeira cadeira de rodas.
Na escola, o menino que não mexia braços e pernas conheceu a professora de educação física Crislei Maria de Morais, hoje com 35 anos. Ela dava aulas a meninos e meninas com necessidades especiais. No meio dele, Jeferson. "Ele se arrastava, mas tentava fazer as atividades", ela conta. O garoto derrubou todas as teorias que a professora aprendera na faculdade. "O olhar dele era diferente, de gente que diz: 'Eu quero aprender, quero viver com dignidade'. Apostei nele na hora", lembra a educadora.
Aluno e professora travaram uma amizade cheia de cumplicidade. Um entendia o outro apenas no olhar. Um dia, do nada, ele pedia que ela o ensinasse a escrever. Ela se espantou. Mas logo encontrou a resposta: "A vida é feita de adaptações. Ele vai escrever de alguma maneira, seja como for...". Jeferson mudou de escola. Foi matriculado no ensino regular. Crislei não seria mais sua professora. Mas nem assim ela o deixou. Acompanhava-o em casa.
Ele passou a escrever com a boca. No começo, foi complicado. Não conseguia segurar o lápis. Mas insistiu. Vieram os calos na língua, lágrimas de emoção ao conseguir rabiscar a primeira palavra. O próprio nome. O nome da professora. A primeira redação. Tudo era comemorado. Até que surgiu a idéia, proposta pela professora, de Jeferson escrever um livro. Contaria ali sua vida, seus sonhos, sua esperança. Topou na hora.
Seis anos se passaram. Folhas e mais folhas de caderno se encharcaram de palavras desenhadas em letra de forma. A vida, escrita com a boca, tomava rumo. E todo o sonho virou realidade nesta semana. A obra está pronta. Os preparativos e toda ansiedade agora são para o lançamento. Jeferson empolga-se. Mal acredita que é verdade. Os olhos negros brilham. O sorriso emociona.
E ele tem mais um plano: com o dinheiro que conseguir juntar da venda da obra, comprará sua cadeira de rodas motorizada, a luta de toda uma vida. "É pra minha mãe não fazer mais força comigo quando for me levar pra escola", diz. Cleide se comove com a preocupação do filho. Ele a olha com compaixão. Hoje, Jeferson tem certeza de que, mesmo sem nunca ter andado, consegue voar mais alto que a pipa que o irmãozinho empina na capa do seu livro. E, se voa, sonha. Foi assim que ele escreveu cada linha de sua história.
FONTE:http://www.e-educador.com/index.php/educultura/3584-book02
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